Pelo menos uma vez na vida, todo gamer que se preze já fez o exercício de se imaginar colaborando no desenvolvimento de um jogo de videogame. Se esse pensamento era pouco estimulado até a era dos 16 bits, dali para frente, com a popularização da internet, é seguro dizer que os bastidores de quem trabalha nesse universo foram sendo cada vez mais expostos.
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Computadores, pôsteres, entrevistas empolgadas, boné liberado, ambiente descolado e a simples ideia de que você pode ostentar o argumento que ganha a vida jogando videogame eram algumas das coisas que se destacavam toda vez que se observava algo desse ambiente de trabalho.
Mas… (existe um ditado que fala que tudo que foi dito até o “mas” pode ser esquecido. Talvez seja o caso). Assim como em qualquer outro ambiente de trabalho, existem problemas nesse Neverland. E na área gamer, dependendo do setor, eles são até maiores do que naquele emprego do seu pai/mãe, que você jurava que era um porre.
É o que apontam, com justo conhecimento de causa, quatro experientes profissionais da dessa área que atuam em diferentes frentes: Rafael Lima (artista 3D, programador, game designer), Thomas Leme (game designer), Daniel rivers (artista 3D) e Marx Walker (jornalista e ex-funcionário da Div. PlayStation – Sony Japan).
1) e-Sports
Para muitos jogadores, o e-Sports é uma parada intragável ainda dentro desse mercado. Muitas vezes, o gênero que revolucionou a indústria gamer pode ser um tanto que maçante para os que não suportam isso, e ainda sim tenham que se ver colaborando em alguma parte desse processo.
E se trabalhar desenvolvendo esse tipo de jogo pode ser duro, pior ainda pode ser trabalhar jogando isso. “Não desejo isso nem para o meu maior inimigo” diz Thomas Leme, game designer há 12 anos e fundador da Overtime Studios e com games como Magic Puzzle Quest no currículo. Thomas alerta para o comparativo que essa nova profissão tem com o futebol, onde somente poucos alcançam a glória e o restante vive numa espécie de limbo.
Juntamente a isso, o professor também alerta que muitos profissionais podem se sentir desconfortáveis em ter construído algo com muito esforço e de repente ver um garoto ganhar em um mês o que esse profissional não ganhará em 10 anos. E essa constatação também pode ser observada em eventos. Thomas lembra que na última BGS a área reservada para os desenvolvedores tinha o apelido de “favela indie” nos bastidores.
2) Falta de Know how profissional
Quem já está nesse mercado há algum tempo pode confirmar sem exitar: Existe muito despreparo profissional em boa parte da indústria gamer. A falta de informação, cursos específicos e conhecimento da estrutura são apenas algumas das dificuldades que se pode esbarrar ao entrar nesse mercado.
Diante desse cenário, muitas são as chances de cair naquela situação que seria cômica se não fosse trágica antes: Ter experiência de veterano para começar como aprendiz. Esse foi um dos principais problemas enfrentados por Daniel Rivers, que atuou nos efeitos especiais do seriado Black Mirror e hoje é professor e fundador da Escola Rivers de Games e Design;
Essa situação de você estar por conta é um tempo muito mal produzido dentro da longa jornada que é ingressar nesse universo, que requer aprendizado constante. “É sufocante, justamente porque você já perdeu muito tempo tentando entender o processo e mais tempo ainda tentando ficar bom no que você está focando” diz Daniel.
Outra maneira de se trabalhar com games também é fazendo a cobertura jornalística desse universo. E embora pareça ser algo relativamente fácil, existem alguns pontos tensos nessa parte da indústria. Uma delas é quando se precisa abordar partes técnicas de uma tecnologia. Termos como a tecnologia nanite, que será usada no PS5, podem deixar o jornalista boiando ao tentar explicar isso e, o pior, informar errado.
“Grandes sites da imprensa internacional abordaram esse conceito tecnológico errado, e isso com certeza é um desserviço não só para quem se liga nessa parte do processo como também para aqueles que queiram trabalhar com isso” diz Marx Walker, jornalista e ex-funcionário da Div. PlayStation – Sony Japan.
3) Destruir uma paixão
Uma coisa é amar a pessoa, outra coisa é viver com a pessoa amada. Essa mesma premissa é totalmente aplicável quando a ‘pessoa amada’ é a indústria gamer. Isso porque a profissionalização em torno de algo que se ame fazer muitas vezes vai por um jovem ingressante nesse universo de frente para a parte maçante da coisa, e poucos estão preparados para isso.
E é muito observado que essa rotina muitas vezes desestimule quem trabalha nessa área a não ver mais o seu hobby como via até então. “Não tenho mais saco para jogos” diz Thomas, que não consegue mais ter uma jogatina tranquila sem ficar olhando questões técnicas enquanto isso.
“A gente aqui na redação conhece o pessoal que trabalha noticiando os seriados e que também adora jogar. Aí depois de um tempo, a gente está assim: Na folga, o redator gamer vai ver um seriado e o redator de seriado vai bater um game.” comenta Marx, argumentando que as paixões, quando profissionalizadas, podem dar uma ressaca de vez em quando.
Daniel Rivers também comenta do hiato que essa profissionalização lhe causou durante essa ‘overdose’ profissional. “Fiquei 5 anos sem jogar videogame’, garante.
4) Você vai ficar mais exigente para se divertir com isso
É uma questão química. Sua serotonina só é liberada diante de alguma atividade prazerosa, e com o tempo, essa molécula vai ficando mais ‘exigente’. Ou seja, ela não se impressiona mais com tanta coisa, já que vai precisar de mais estímulos para liberar a mesma carga de antes.
E assim como foi dito acima, quem trabalha com games, de repente, passa a rever critérios daquilo que é divertido para ele dentro dessa área. E essa exigência pode ser atendida de duas maneiras. Uma delas é jogando um game que seja realmente muito bom quando comparado com o game em que você trabalha diariamente.
A contramão disso também é igualmente exigente, que é se distrair com um joguinho ‘descomplicado’. E dado que o conceito de ‘simples’ nos jogos pode ser algo igualmente exigente, aí está o drama.
6) Crunch
Se você pensa em trabalhar na área de games, saiba que essa expressão vai fazer parte da sua vida em algum momento. O termo inglês que significa “triturar” é utilizado para definir os períodos nos quais a equipe de desenvolvedores vai puxar hora até mais tarde no estúdio.
O crunch é sempre sinal de problema, seja por conta de erros de programação, fornecedores, imprevistos sociais e, como vimos em 2020, até mesmo de ordem biológica (coronavírus), o fato é que o crunch ataca pequenos, médios e grandes estúdios. Se você sonha com um trabalho das 8h às 17h de segunda a sexta, respeitando feriados… reveja isso. O ingrato extremo dessa situação pôde ser experimentado por Thomas Leme, que enfartou aos 21 anos, depois de três semanas sem dormir, tentando conciliar o trabalho com games e faculdade.
7) Concorrência
Ok, existir é concorrer com tudo ao redor. Mas é numa área como a de games que você pode conferir isso no modo hard. Se existem todos os problemas acima citados, existem também alguns poucos que os dominam asiaticamente, deixando a vida de quem quer ocupar as poucas vagas nesse setor uma missão penosa.
Contudo, isso não é concorrido somente para quem trabalha no jogo, mas também muito desafiador para os executivos a frente desses projetos. “Na minha visão hoje, fazer o jogo é a apenas 10% da dificuldade.” diz Thomas, lembrando que os jogos também concorrem entre si, o que pode fazer com este ou aquele projeto seja cruelmente ofuscado por um título com mais oportunidades de trabalhar sua comercialização em várias frentes.
Conclusão
Em suma, a área reserva dores e delícias, e é preciso estar atento aos fatores apontados para que não se perca no meio do caminho, desistindo de algo que se começou com tanto empenho. Diante disso, os profissionais alertam que é imprescindível que seu empenho esteja ciente das pedras que estarão pelo caminho, pedras que, certa forma, precisarão ser amaciadas durante essa jornada com paciência, dedicação e alguma sorte.
Afinal, entre aquela criança com o joystick na mão e o adulto com seu nome nos créditos ao final do jogo, existem vários bugs. O modo é hard, mas a boa notícia é que você começa como o player 1, então, mantenha o controle. Confira o bate-papo na íntegra abaixo: