Metrô de São Paulo, horário de pico, segunda-feira, 18h55. Vagão lotado de gente, mas nem todos estão 100% ali de uma certa maneira: Ricardo, por exemplo, está em êxtase no Rock in Rio, já Vanessa presencia uma gritaria num famoso hospital de Seattle, enquanto Felipe se aproxima de um buraco negro ao lado de Pedro Loos e Camila segura o choro porque alguém que ela ama muito vai morrer de um jeito horrível em alguns segundos.
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O que todos eles provavelmente tem em comum? Resposta: Um bom fone de ouvido “usado no talo” e uma grande chance de descer na estação errada, graças à imersão que essa ferramenta de ignorar o mundo lá fora trás para seus usuários. Agora, se algum deles for um gamer, essa imersão toda pode vir junto com algumas consequências.
Ricardo é um deles. Empapuçado do show, ele chegou em casa, comeu, tomou banho e em menos de duas horas suas orelhas já estavam novamente envolvidas na espuma de um headset, onde agora sons de tiros substituíam os riffs de guitarras. Tiro, porrada e bomba só foram parados quando relógio, sono e dor no corpo se uniram pra lembrar que dali a 5 horas o play da vida real precisaria ser dado novamente.
Na hora de deitar, Ricardo ouviu um som de apito agudo bem ao fundo. Típico de quem passou horas exposto a um barulho. “Dá nada, amanhã passa”. A manhã chegou e o barulhinho também. Bom, vão demorar alguns dias, talvez meses até que Ricardo se dê conta de que esse barulhinho é um dano sonoro causado pelo uso em alto volume dos fones de ouvido.
Jogador pego
Ricardo ainda não sabe, mas pode ter virado estatística ao fazer parte dos 14% da população mundial adulta que sofre com zumbido no ouvido. É isso aconteceu porque ele passou (e muito) do que é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que diz que adultos podem ser expostos com segurança a 80 decibéis (dB) por 40 horas por semana, que é aproximadamente o nível de ruído de uma campainha.
Acima desse nível, no entanto, a quantidade segura de exposição ao ruído cai rapidamente. Para crianças, os limites são ainda mais baixos. Estudos já demonstraram que os níveis médios de ruído dos fones de ouvido em quatro jogos de tiro estavam entre 88,5 e 91,2 dB”, explica a otoneurologista Dra. Nathália Prudencio, médica otorrinolaringologista especialista em tontura e zumbido.
“Isso pode apresentar um risco aumentado para perda auditiva irreversível e desenvolvimento de zumbido no ouvido, uma condição em que há a percepção de um som na ausência de um estímulo sonoro externo”, acrescenta a médica.
Artigos já alertam sobre o comportamento da cultura do som alto
No começo desse ano, um artigo publicado no BMJ Public Health revisou 14 estudos que, no total, envolveram mais de 50.000 pessoas e mostrou que há realmente esse risco. “A exposição a sons altos pode afetar a audição e causar uma espécie de ‘fadiga’ nas células sensoriais do ouvido. Embora essas sensações possam se resolver em alguns dias, conforme as células sensoriais se recuperam, a exposição regular ou prolongada ao ruído pode se acumular e resultar em perda permanente da audição ao longo do tempo”, explica a otoneurologista.
“É claro que os jogadores podem diminuir o volume enquanto jogam para minimizar o risco, mas o estudo sugere que parte do problema é o tempo que as pessoas passam expostas a volumes altos. Um estudo descobriu que sons impulsivos — rajadas curtas, repentinas e altas, como ruídos de tiros, batidas ou motores acelerando — atingiam 119 dB. Quanto mais alto o som, menor o tempo que você pode ouvi-lo. Alguns estudos encontraram correlações entre jogos e perda auditiva, enquanto outros relacionaram a atividade com zumbido”, explica a médica.
Estimativa do estrago na comunidade pode ser maior do que se pensa
De acordo com Nathália, embora as pesquisas relatem a crescente quantidade de pessoas que estão lesando sua audição pela causa em questão, esse apontamento não passa nem perto de calcular com precisão quanto dessa parcela segura um controle.
De acordo com a médica, alguns dos estudos analisados nessa revisão datam da década de 1990, quando o mundo dos jogos era muito diferente de hoje, em que os recursos audiovisuais são mais realistas, para dar a sensação de imersão completa no jogo”. Lembra a profissional, se referindo a uma época onde o máximo que vinha de som provinha de uma TV ou do som da sala ligado ao aparelho.
Game over pro headset? Não
Desgraceiras à parte, é possível se divertir sem causar danos às células sensoriais do ouvido? A médica diz que sim. “A primeira recomendação é diminuir o volume para 50% ou não mais alto que 60% do máximo. Para quem usa fones de ouvido, o ideal é comprar um par que se ajuste bem e bloqueie o ruído de fundo, para não haja a necessidade de aumentar o volume.” aconselha a profissional.
Alguns jogos permitem ajustar os níveis de som para efeitos especiais e música, e isso é importante para diminuir os sons impulsivos altos”, alerta Nathália, que lembra ainda que fazer pausas também é bem-vindo. “Dê pelo menos 5 minutos a cada hora de descanso ao ouvido deixando de usar os fones. E quando possível usar o som ambiente”, orienta.
E agora?
Por fim, a médica lembra que é fundamental prestar atenção às mudanças na audição. “Os principais sinais de alerta de perda auditiva incluem sentir dificuldades para acompanhar conversas em ambientes ruidosos, aumento de volume de aparelho eletrônicos e até zumbido. Caso o paciente perceba esses sintomas, ele deve procurar imediatamente um médico otorrinolaringologista ou otoneurologista”, finaliza a doutora.
A profissional realizou uma entrevista exclusiva com o Observatório de Games, onde apontou outras informações importantes, que serão veiculadas em outro artigo. A matéria será atualizada assim que o conteúdo for ao ar.